Doze anos mais tarde


A caminho dos doze anos de infecção pelo HIV, a SIDA certamente já não é o que era.
Mudam-se os tempos mudam-se os pensares, e aqueles medos e receios que na altura da infecção são comuns à maior parte dos infectados desapareceram.
Contudo, não poderei dizer que o HIV e a SIDA se varreram da minha cabeça e que apenas penso nisso na altura das tomas dos medicamentos e nas vezes que vou ao hospital às consultas e tirar sangue para as análises.
Se por um lado os medos iniciais da morte a curto prazo e do grande sofrimento pelo qual iria passar até que ela viesse tivessem desaparecido, por outro lado nasceram outros medos e houve um despertar da consciencialização da doença. O conhecimento adquirido acerca da mesma e das terapias que mantêm o vírus controlado como se estivesse adormecido, aviva o seu fantasma por se desenvolverem patologias devido à toxicidade dos medicamentos. Deixei de pensar na morte devido à falência do sistema imunitário e ao desenvolvimento de doenças oportunistas e comecei a pensar nela devido à destruição do fígado, dos rins e do risco de doenças cardio vasculares.
O certo é que nada é como era antes, e embora seja moda dizer-se que a SIDA deixou de matar isso é apenas para tranquilizar as mentes dos menos atentos.
Brinca-se um pouco com os horários das tomas dos medicamentos, pois o conhecimento acerca da semi vida dos mesmos e da sua concentração no sangue permite-nos isso. Chega-se mesmo ao ponto, a depois de um concerto de rock se tomarem os medicamentos com cerveja(pudera não existe outro liquido disponível), mas tudo bem. Enfim uma doença crónica, que tecnicamente não o é, e que mais parece uma bomba com um mecanismo retardador que lhe dá o aspecto de uma bola inofensiva, mas cujo conteúdo está pronto para explodir quando por qualquer motivo o detonador actuar.
É um pouco como a historinha do brincar na floresta enquanto o lobo não está, que alegravam as nossas brincadeiras de criança. O lobo ia respondendo às nossas perguntas dizendo que peça de roupa estava vestindo, até estar pronto para metaforicamente nos atacar.
Só que aqui, nesta história real, quando os indicadores revelam a resistência do vírus aos medicamentos, por vezes não há lugar para onde fugir.
A esperança no aparecimento da cura vai-se desvanecendo, a cada dia que passa. A obsessão compulsiva de ir a congressos e mais congressos e a esperança que renasce após cada um deles, quando nos falam de uma vacina ou de um novo medicamento extremamente promissor, desaparece pouco tempo depois quando de um momento para o outro sabemos que a investigação parou e que por qualquer motivo foi mais um fiasco da investigação.
O engraçado no meio disto tudo, é que se me perguntarem o que me dói eu forçosamente terei de dizer nada, exceptuando claro está as dores provocadas pelos enfartes sucessivos que tenho tido e cuja origem é desconhecida não se sabendo se é do próprio vírus ou da medicação para o controlo do mesmo, e aqui entram as teses e os estudos feitos e o culpado nunca é revelado com certeza absoluta.
Para além disso poderei dizer que me dói a alma, não só por mim mas por todos aqueles que estão infectados, e por aqueles que em breve passarão a estar porque a mensagem dos perigos da SIDA não foi passada e ela só acontece aos outros.
Não tenho medo da morte e sei que um dia sem data nem hora marcada nos vamos encontrar. É o destino de todos os seres humanos e não é o HIV que vem modificar esta lei da natureza.
O futuro é o presente vivido hora a hora o mais intensamente possível. Enquanto esteve a ler este texto quantos sem esperar tiveram o seu encontro com a morte. Vida e Sida são palavras quase iguais diferenciando-se apenas na primeira letra. Curiosamente a primeira começa com uma letra que parece uma seta indicadora, que aponta para baixo ou seja para a sepultura. A segunda palavra, associada à morte começa com uma letra que parece um sinal de trânsito que indica curvas e contra curvas.
É por essa estrada que eu sigo contornando as curvas enquanto puder.
Viva a vida e faça o favor de ser feliz.

14 comentários:

Fatyly disse...

Não tenho palavras para comentar e bastante comovida aplaudo-te de pé e tiro o meu chapéu.

Parabéns pelo texto com uma ENORME MENSAGEM VIVIDA NA PRIMEIRA PESSOA!

Toma uma abraço sincero

sideny disse...

raul
Muito bom o teu texto.
So mesmo tu para descrever o que sentimos e o que tu sentes.
podes crer, faz mesmo doer a alma.
como nos doi!
beijocas

Julio disse...

Raul, gostei de ler; foi escrito com o peito aberto, mas fiquei triste pela tua situação. Que diabo, como é que ficaste assim?!...

R.Almeida disse...

Fatyly
Tirar o chapéu porquê? O HIV é apenas uma infecção crónica, que causa mossa no inicio, quando o desconhecemos. Não importa o número de anos de infecção pois ele permanece colado em nossas mentes. Aprendemos a viver com ele e quando as coisas correm menos mal é apenas uma lição de vida, da qual podemos tirar lições. É uma condenação para a vida, mas comparada com outras doenças é algo soft actualmente. Não fosse o estigma e todo o negativismo gerado à sua volta, e quando nos apresentassem o catálogo das doenças para escolher certamente que seria uma das preferidas.
Beijo grande.
Sideny
Acabamos por sentir mais a dor dos outros do que a nossa dor e tu bem o sabes.Certamente a neoplasia, à qual foste operada deu-te e continua a dar mais preocupações que o HIV.És membro de honra do clube,mas nem notas e estás pouco precupada com o HIV, querendo apenas saber que o bicho está manso e não tem chances de causar problemas. Um beijo enormeeeee.

R.Almeida disse...

Julio
Essa de mastigar cinzas aguça-me a curiosidade acerca do seu gosto.
Quanto à tua curiosidade é simples explicar,fiz um teste e deu positivo. A minha situação que te faz ficar triste é referente a kê? Aos problemas cardiacos presumo. Vou ficar novo, quando os mecânicos cirurgiões consertarem a bomba do sangue.
Se é em relação ao HIV, isso não é de se ficar triste, pois toda a carga negativa associada faz as pessoas pararem e pensarem. É necessário abrandar na corrida da vida pois a caminhada é longa e os caminhos tortuosos.É necessário sabermos quem somos e o que andamos cá a fazer, pois creio que acreditas que não somos deste planeta e estamos cá como numa plataforma de um aeroporto esperando seguir viagem.
Os grandes abanões que levamos na vida ajudam a encontrarmos o nosso rumo. Um abraço

Julio disse...

Acredito que, sim, estamos aqui de passagem, a caminho de alguma “Luz Impessoal” Viva, Cósmica, Evolução ainda não completa, etc. Mas QUEM desenhou tal sistema?...
Julio. Joanesburgo

Silvia Madureira disse...

Olá Raúl:

É isso!

Ninguém sabe quando morre...pode ser num acidente, pode ser em qualquer lado...costuma-se dizer que para morrer basta estar vivo...

Pensar nela? Pensamos...é inebitável...mas...vamos tentar aproveitar bem todos os momentos que temos pela frente...

beijinhos e muita força...eu sei que tens!

Odele Souza disse...

É horrível isto das medicações terem efeitos colaterais, por vezes muito sérios. Consertam uma coisa, estragam outra. Por isso não concordo que a medicina esteja adiantada.

Um abraço.

R.Almeida disse...

Olá Silvia
Tem razão ninguém sabe quando morre, e ninguém morre de véspera excepto o perú com uma "narsa" (bebedeira) de caixão à cova, o que decerto lhe tira a noção da mesma.Vamos vivendo felizes enquanto a morte não chega, pois a vida é tão curta para a vivermos de outra maneira. Infelizmente muitas vezes não sabemos apreciar a vida e perdemos tempo não a vivendo em pleno. Bjs

R.Almeida disse...

Odele
A medicina não é uma ciência exacta,e nas suas experiências de um modo empirico chegamos a grandes feitos.Infelizmente e no que diz respeito a certas doenças ainda está muito atrasada e muitos profissionais autorizados a prescreverem medicamentos, por falta de informação e ou conhecimento cometem erros de bradar aos céus.
Nunca conseguiremos o conhecimento total do comportamento do corpo humano face a certos invasores que provocam as mais diversas doenças.
Os pequenos passos dados pela ciência médica não deixam no entanto de ser passos de gigante para toda a humanidade.Um abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Raul
Acho que a tua força de viver, de querer, de amar e de doar fazem que o teu tempo psicológico ultrapasse, a cada o momento, o tempo real pela intensidade da vivência.
E acredito também que, longe de entregares os pontos, hás-de vencer todas essas dificuldades e viveres em punho aberto de emoções os anos vindouros que te estão reservados.
Esta grande provação tem feito de ti um ser humano de excepcional sensibilidade e acuidade para as chagas sociais relacionadas com o HIV em grupos mais fragilizados que, com o teu saber e generosidade, poderão encontrar a luz que lhes falta para lutarem e contribuirem como qualquer outra pessoa para a construção da sociedade em que se inserem.
Força, Raul.
Abraço

isabel mendes ferreira disse...

posso desejar o mesmo?



______________.



abraço.


para Si.

Hermínia Nadais disse...

Muito bem dito! Viva a vida! Nada como um pensamento positivo para mudar o rumo das coisas, e isso temos de o conseguir ter sempre,m embora às vezes seja difícil.
Força, muita força, acredite que é mais uma pessoa a pensar em si, no seu bem estar e felicidade.
Tudo de bom,
Hermínia Nadais

Branca disse...

Raul,

Os teus textos são sempre fantásticos! Tão realistas, mas ao mesmo tempo tão cheios de vida e de força! Como dizes todos temos encontro marcado com a morte um dia. Aprendi a viver cada dia o melhor que posso, desde que tive um grande acidente de viação há 11 anos, onde não ficou a minha família toda por "milagre".
Não é necessário ser portador de HIV para que a morte espreite. Todos temos um caminho e vivê-lo dia a dia com amor e coragem é a melhor forma de saborear a vida.
Portanto vive-a e faz também tu o favor de ser feliz.
Beijinhos
Branca