O MEDO

O nosso mundo vive demasiado sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos afirmativos do que de negativos. Se os afirmativos tomarem toda a amplitude que justifique um exame estritamente objectivo da nossa situação, os negativos desagregar-se-ão, perdendo a sua razão de ser. Mas se insistirmos em demasia nos negativos, nunca sairemos do desespero.·
Bertrand Russell, in 'A Última Oportunidade do Homem'

“A vida continua sempre a avançar, quer nos portemos como cobardes, quer nos portemos como heróis. A vida não impõe outra disciplina - se ao menos o soubéssemos compreender! - para além de a aceitarmos tal como é. Tudo aquilo a que fechamos os olhos, tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, acaba por contribuir para nos derrotar. O que nos parece sórdido, doloroso, mau, poderá tornar-se numa fonte de beleza, alegria e força, se o enfrentarmos com largueza de espírito. Todos os momentos são momentos de ouro para os que têm a capacidade de os ver como tais. A vida é agora, são todos os momentos, mesmo que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa ao serviço da vida.”
Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

Acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helénico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico do que o ideal helénico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos.
Oscar Wilde, in 'O Retrato de Dorian Gray'

Quem nunca sentiu o medo? Quem não vive e convive diariamente com o medo no seu dia a dia sobrecarregado de inquietações que, no fundo, não são mais que manifestações do próprio medo?
Medo de viver, medo de morrer, medo de enfrentar a doença e de ir perdendo no percurso as pessoas amadas. Medo da não-aceitação, da solidão, da perda de objectivos sem os quais a vida deixa de ter sentido.
Nós vivemos sobre a tutela do medo se até as coisas boas nos assustam por as não sabermos aceitar ou pela antevisão do sofrimento que nos causarão se as perdermos. O medo é físico, é psicológico, é animal, é a condição humana resumida à inquietação que a domina e que a perverte. O medo é tão intenso quanto a libido que o sacia e lhe dá tréguas, o único mergulho possível em mar encapelado. A única possibilidade de sobrevivência e de criação suprema.
Nós somos o medo e, por isso, não podemos deixar de ter medo.

E é nessa representação do ser em que a socialização eivou de novas inquietações a representação do mundo físico e social, que o infectado pelo HIV recebe a notícia da sua condição. Ele não terá o mesmo rosto perante a família e os amigos a quem deverá comunicar a doença maldita. Ele sente-se semi-castrado perante um sexo que já não se expande livremente mas com novas regras. Ele tem medo de ser rejeitado e da compaixão. Ele tem também medo de ser amado. Ele tem medo de sofrer, tem medo de olhar a vida com olhares que perscrutam as novas fragilidades. Ele tem medo que as portas se fechem e que as portas se abram porque descrer depois de crer é o medo materializado em pesadelo.
Sim, o infectado tem medo do HIV mas mais do que a doença contam as suas representações, as suas crenças, os seus valores e as suas amizades. Ele tem medo porque ele é medo. Um medo que não se dissipa a não ser com os afectos tranquilos de quem sabe partilhar ajudando a caminhar e ajudando-se a si próprio nessa ajuda que o torna mais forte.

Façamos pois do medo a nossa bandeira. E sob a bandeira do medo damos asas às nossas emoções que criam, recriam, transformam e operam milagres. Porque o medo não se deixa comprar nem sofre hierarquias, ele é a nossa consistência e nossa força.
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12 comentários:

Fatyly disse...

Se Henry Miller e Bertrans Russel escreveram o que escreveram, desculpa lá Silêncio Culpado, mas perante o teu grito tenho que tirar-te o meu chapéu e aplaudir-te de pé.

A juntar a tudo o que dizes junto o maldito jornalismo escrito e televisivo que deveriam falar do que falam mas jamais em tempo algum num modo descrente, de medo que por este andar mais dia menos dia 80% dos portugueses andam com depressões.
Como é óbvio todos temos medo, uns mais do que outros e eu com o meu optimismo de sempre nego-me a ter pensamentos maus, a olhar o mundo com olhos de carneiro mal morto e se me surge um problema pego nele, meto-o no amassador, dou-lhe umas cacetadas até ficar resolvido.

Todos os doentes incluindo os portadores do "deesgramado HIV", depois da paulada, vacilam, cambaleiam, ficam desnorteados, revoltados, ou seja envoltos em pó da decorracada. Mas temos que lutar para que a sociedade seja menos hipócrita - ah eu até apoio...mas chega-te p'ra lá...que só apetece dar-lhes com um pano cheio de líxiva.
Todos julgam que estão imunes, que só acontece aos outros e quando um dia são apanhados na esquina da vida...aí já apelam por SOS e passam a dar valor que:
a solidariedade, a amizade, um sorriso, tomar um café, falar - não tem cor, sexo e muito menos catalogações por doença.

ADOREIIIIIIIIIIIIII e que apareceram muitas Silêncios Culpados (desculpa eu fixo os nicks e dificilmente os nomes).

Subscrevo e obrigado por este momento de reflexão e muito bem escrito.

Uma beijoca muito grande e sincera

. intemporal . disse...

Olá lídia

Sim sinto medo pelo simples facto de estar vivo.

Actualmente o meu maior medo são os seres humanos, capazes de tudo em luta pela sobrevivência.

E presentemente, todo o desenrolar de uma vida é em permanente luta pela sobrevivência.

E o predador porque precisa de o ser, não olha a meios para atingir os seus fins...

Valores? Condição humana? O que é isso?

A maldade dá mais prazer e é mais fácil de realizar, ainda que no futuro a mesma represente uma dor enorme para quem a cometeu.

[Acredito que ainda seja assim... mas também não sei...]

Relativamente ao VIH, sim, durante anos após anos tive medo de fazer o teste.

Sim porque quando o fiz e o mesmo foi positivo, tive medo do sofrimento, da degradação e da morte.

Entretanto, os medos foram desvanecendo e actualmente vivo mais feliz.

Valorizo o que não valorizada.

Não valorizo o que valorizada erradamente.

Porque pior do que me aconteceu, por mea culpa ou não, sobra o quê?

despentearem-me?

Gostei muito do Seu texto, obridado pelo tributo, para uma causa sem causa, há muito pelo medo de a assumir, de a enfrentar e de lhe dar o valor certo no significado concreto.

Um abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Fatyly
Ninguém pode vencer o medo. Há momentos em que nos sentimos capazes de grandes feitos mas noutros deixamo-nos dominar pela desorientação que o medo nos provoca. Para manter o medo sempre sob rédeas seria necessário que não fossemos humanos.
Todavia o mais importante, penso eu, será a orientação de vida para combater a discriminação que se apresenta em diferentes quadrantes da vida social vestida com roupagens diferentes mas nem por isso deixando de ser o que é: um preconceito que arranha e mata, que é impiedoso e indigno de sociedades avançadas.
Pelo meu lado faço o que posso, escrevendo e incitando à reflexão na esperança que com isso haja uma maior aproximação entre as pessoas. Mas deixa-me dizer-te, e não digo isto para retribuir um elogio, tu tens sido para mim uma referência que me tem ajudado a reflectir em perspectivas diferentes. O projecto Sidadania tem sido muito importante para mim que entro nele como uma pessoa estranha e logo me envolvo e faço dele uma causa que me anima a lutar.
Foi bom conhecer-te e melhor ainda será continuar a contar contigo nesta jornada.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Paulo
Também os predadores precisam ser ajudados. Também eles têm medo e tensões tal como nós que, por melhor que sejamos, também possuímos a nossa parte lunar. O sociólogo F.Ferrarotti dizia que a história das emoções é a história dos advérbios de tempo.Transpondo para o caso concreto aqui também se enquadram os medos.
Contudo entendo que tudo começa e acaba dentro de nós próprios, da nossa capacidade de compreender e de prosseguir mesmo à custa de reclassificações e de alguns passos de recuo para depois se avançar.
O predador nasce e desenvolve-se dentro de nós mesmos e é a partir dele que o outro se alimenta.
Este é o grande desafio.
O outro grande desafio é manter a auto-estima mesmo quando somos desacreditados ou postos em dúvida. Porque, Paulo, há bem pior do que o que te aconteceu. Tu estás inteiro de corpo e espírito, inteiro nas tuas faculdades e nos teus sentimentos. O HIV é residual porque a cura virá antes que os danos se façam sentir na tua pele.
A vida é tua e, por isso, não a inquietes. Deixa a fera dormir para que não ruja e possas manter esse teu espírito aberto, afectivo, de grande criação artística e solidariedade.
É assim que sempre te quero ver e conhecer.
É assim que me orgulho da tua amizade.

Abraço

sideny disse...

lidia
o texto esta muito bom mesmo.
a fatyly e o paulo ja disseram praticamente tudo.
beijinho

Eme disse...

Há muito que o medo se tornou fantasma e apanágio da sociedade. É inevitável devido ao modo como os mass media trazem até nós as notícias espalhando quase um terror que cultiva o desassossego. Tudo parece poder atingir o homem como um tiro em campo aberto de como diz uma citação de Vieira "nem Deus nos templos e sacrários se encontra seguro". Tudo isto reflecte se num estado de desconfiança em relação a tudo, o HIV foi igualmente roeado de mitos erradamente interpretados graças ao "protagonismo" dos media e a sociedade entrou numa espécie de conformismo em que as acções são geridas pelo medo sem que haja uma procura da verdade que o suavize. Limitam-se a deixar-se estar. Não questionam. Não procuram. O medo desce sob as cabeças e paira sobre elas uma vida inteira.
E por outro lado, há os felizes que sabem aprender com os seus medos.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Sidney

Nunca ninguém disse tudo porque cada um tem a sua forma de dizer.


Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

M.

Aprender com os medos é uma forma de inteligência e uma necessidade.
O medo tem a ver com a pureza do instinto que nos engrandece. Sem medo ninguém escreveria um poema.


Abraço

Å®t Øf £övë disse...

Lídia,
Com ou sem medo, com ou sem alguma doença, é preciso que cada um de nós consiga encarar a vida com optimismo, e saiba viver cada momento com alegria e plenitude, fazendo de cada instante de vida um momento único e irrepetivel.
Bjo.

Silvia Madureira disse...

Olá Lídia:

A Lídia é muito bonita...
Quem me dera chegar à idade da Lídia com toda a sua beleza, com a direcção do seu olhar.

Medo...tenho...claro...
Vou vivendo com ele...vou tentanto matá-lo.

Beijinhos para todos da sidadania

SILÊNCIO CULPADO disse...

Å®t Øf £övë
Por mais que se queira viver de punho aberto, e talvez mesmo quando se quer viver de punho aberto, estão medos implícitos nos actos de alegria e plenitude. Porque a vida é contingente e a única certeza é a da finitude. Porém ter força para acreditar, para lutar e para saborear o que de bom nos é permitido é a receita mágica para a nossa realização pessoal que passa sempre por vencer muitos obstáculos e por não fazermos percursos solitários.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Sílvia Madureira

Não sei que te dizer a essa observação a não ser que gosto hoje mais de mim do que que quando era mais nova. E isto porque me sinto menos egoísta, mais capaz de me dar a causas em que acredito, mais capaz de parar e olhar à minha volta e desprender-me de futilidades e competitividades normalmente associadas à carreira profissional.
É todo um processo de amadurecimento que faz de mim uma pessoa mais apta do ponto de vista humano do que quando era mais nova. E essa é a verdadeira beleza.
Gostei muito de te conhecer pessoalmente e sei que o teu percurso será rico e intenso e com realizações gratificantes. Assim consigas gerir os teus medos.Porque os medos existem e atormentam-nos mesmo quando nos abstemos deles. Só quando saímos de nós próprios, e encontramos na família humana o sentido da vida, sentimos aquela paz que nos faz perder o medo.

Beijos