Entrevista ao NM

Por norma, quando falamos da SIDA, somos dominados por um pensamento ao estilo “acontece aos outros, mas nunca a mim”. Raul Rudoisxis (nome fictício) talvez pensasse da mesma maneira até 1997, altura em que descobriu que era portador do vírus da SIDA. “Andei cerca de um mês com febres que teimavam em não passar, até que fui internado num hospital para pesquisarem a origem das mesmas”, relata-nos Raul, relembrando ainda: “A maneira como a notícia da infecção me foi dada pelo médico foi de uma crueldade e de uma desumanidade inqualificável”.Quando lhe perguntámos como foi que contraiu o vírus, recebemos uma resposta curiosa: “Há uma curiosidade mórbida para se saber como as pessoas foram infectadas. Talvez seja para rotularem o infectado - se foi via sexual, são promíscuos, se foi por se injectarem com substâncias, através da partilha de seringas, são drogados. Em qualquer dos casos, são «outsiders» numa sociedade «certinha» e de bons costumes. Os infectados acabam por ser vistos como pessoas que devem ser postos à margem dessa dita sociedade cheia de preconceitos, que, de alguma forma, procura motivos para apontar o dedo e castigar. No meu caso, foi por via sexual”.
OS «ALIENS» DE MEADOS DA DÉCADA DE 90
É certo que, há 11 anos, a SIDA já não era uma doença desconhecida (bem pelo contrário), mas Raul defende que, na época, “não havia a informação que há hoje”. A própria forma como Raul encarava a SIDA em 1996 e 1997 era, sobretudo, fruto de um conjunto de visões estereotipadas sobre a doença: “Sabia que a SIDA existia. Já tinha passado a febre de que era uma doença de homossexuais masculinos e negros, estávamos na fase em que era também uma doença de prostitutas/os e de drogados que se injectavam”. A própria ideia do que era ser-se seropositivo seria bastante diferente: “Através de filmes que iam passando na televisão, sabia que havia um medicamento, o AZT, que não curava, mas que adiava, por algum tempo, a morte. Lembro-me desses filmes mostrarem os profissionais de saúde - com fatos parecidos com os escafandros dos astronautas - a entrar nessas enfermarias onde, nas camas, jaziam tipos esqueléticos, cheios de tubos e garrafas de alguns litros de AZT a serem-lhes injectados nas veias. Enfim, um cenário de terror, digno de um guião para um filme de ficção científica, em que «aliens» vindos do espaço atacam o planeta terra com uma arma biológica”.A própria forma como Raul via um seropositivo era, há mais de uma década, produto dos estereótipos de então: “A pessoa com SIDA era, para mim, alguém mal vestido, andrajoso, com a cara e o corpo cheio de feridas e muito magro”. “Foram as imagens passadas ao Mundo desde o início que me ficaram na memória”, explicou ao NM o nosso interlocutor. “O quanto eu estava errado e essa minha ignorância no passado faz com que hoje compreenda o que muitas pessoas pensam acerca da SIDA”, frisou.“Morri e voltei a nascer, talvez seja a frase certa para ilustrar as mudanças”, acrescenta ainda.
A RESPONSABILIDADE DE ENTIDADES OFICIAIS
Raul Rudoisxis lamenta que, hoje em dia, muitos preconceitos continuem a sobreviver numa sociedade (supostamente) mais e melhor informada. “A prova disso são os casos que acontecem diariamente, alguns vindos de entidades governamentais responsáveis, que vão alimentando a «fogueira» da discriminação, exclusão social e do estigma”, disse-nos Raul, que, sem se deter, deu mesmo um exemplo: “Parece-me que a actual Coordenação Nacional (para a Infecção VIH/SIDA do Alto Comissariado da Saúde), dirigida pelo professor Henrique Barros, quer fazer reviver esse cenário, com aquela campanha televisiva em que aparece um tipo magricela cheio de pinturas, que mais parecem chagas. Ninguém pensava que uma pessoa com bom aspecto físico, bem arrumadinha e lavadinha, estivesse infectada com o vírus da SIDA. Mas, ainda hoje, há muita gente que pensa assim”.
UMA CAUSA PARA A VIDA
Hoje, passados 11 anos, Raul percebe quão diferente era a percepção que tinha da doença e o que ela é na realidade: “A visão que tenho hoje é completamente diferente. Não porque queira defender-me como infectado que sou, porque passo por cima de todos os preconceitos que existem - e não são poucos -, mas porque assumi a SIDA como uma causa para a vida”. “Estou em luta e em estudo constante sobre a problemática da pandemia, em Portugal e no Mundo. Muitos activistas infectados preocupam-se muito mais com a doença e a sua disseminação do que muitos governos”, contou ao NM.“Os erros do passado deixaram marcas profundas e é um trabalho gigantesco mudar as mentalidades”, explica-nos o nosso entrevistado, sublinhando: “Se todos actuarmos e tivermos o apoio das entidades governamentais, a pouco e pouco, as coisas podem mudar”.
COMEÇA NAS ESCOLAS
Raul defende que a prevenção em relação à SIDA deveria começar logo nas escolas, já que esta seria a única maneira de começar realmente a mudar mentalidades: “O Governo devia apoiar palestras nas escolas com crianças, mesmo antes de estas iniciarem a sua vida sexual activa. As crianças podem levar essas informações para os pais em casa. Era uma maneira de aproveitar o know-how da comunidade infectada e, ao mesmo tempo, de dar-lhes a possibilidade (aos infectados) de, com esse trabalho, arranjarem um meio de subsistência. O saber e a experiência de muitos infectados torna-os em peritos altamente qualificados nessa matéria”.Porém, “a frente de combate não pode ser só na desmistificação da doença”, defende Raul. “Temos de actuar cada vez mais na prevenção, para evitar novas infecções. Os comportamentos têm de mudar e nunca é demais lembrar que a SIDA existe”, acrescenta ainda, afirmando: A educação em relação à doença tem de passar pela informação e não pelo medo. A SIDA não é o «Papão» com que se assustavam as criancinhas.
“NÃO TENHO QUE PUBLICITAR A MINHA DOENÇA”
Para a reportagem do NM, Raul não quis divulgar quaisquer fotos e até mesmo o nome que apresentamos é fictício. Mesmo a idade do nosso interlocutor não é revelada, apesar de Raul não ser propriamente um adolescente, já que tem filhos... e netos. “Não revelo a minha condição de infectado, excepto em casos em que isso é necessário”, contou-nos, sublinhando também: “A minha família sabe, tal como sabem as pessoas envolvidas, de qualquer maneira, na problemática da SIDA com as quais tenho contacto, os meus amigos infectados... e pouco mais. Não tenho que publicitar a minha doença, assim como não o tenho de fazer em relação à minha orientação politica, ao clube de que gosto ou mesmo preferências sexuais”.No dia-a-dia, Raul encontrou uma forma de evitar falar no vírus: “Para os contactos comuns, o meu problema de saúde é uma insuficiência hepática e, recentemente, também problemas cardíacos. E não estou a mentir. Só não sou obrigado a dizer que a minha insuficiência hepática é devida à toxicidade de medicamentos que tomei para o tratamento da SIDA”.Esta questão leva-nos a outra, relacionada com o facto de os seropositivos integrarem grupos de risco no que toca a várias doenças: “Estou ligado a doenças comuns em infectados pelo HIV, como a Hepatite C e as tuberculoses multiresistentes, embora isso não quer dizer que seja tuberculoso ou que tenha Hepatite C”.Mesmo sem mostrar o rosto, Raul não deixa de partilhar com o Mundo as suas experiências e o seu «know-how» sobre a SIDA. Fá-lo, usando o mesmo nome que usou nesta reportagem, no blog SIDADANIA (http://sidadania. blogspot.com/), onde, com uma escrita ligeira e fácil de ler, nos relata experiências, polvilhadas de recomendações e críticas. Para quem deseja saber um pouco mais sobre o que é, REALMENTE, o Síndrome da imunodeficiência adquirida, este pode ser um endereço de visita mais do que recomendável (para não dizer mesmo obrigatória).

Sem comentários: