A SIDA e os outros




Doenças infecto-contagiosas como a SIDA têm levantado, mesmo em países desenvolvidos, inúmeras questões do ponto de vista ético, sanitário e relacional entre os infectados e os outros.É frequente questionar-se a legitimidade de um portador de HIV, por exemplo, exercer profissões como a de cirurgião ou cozinheiro, entre outras, pelo risco de contágio caso o sangue, proveniente dum corte ou dum arranhão, possa facilitar a transmissão a um paciente ou a umconsumidor dum determinado produto culinário. Também frequentemente se tem posto a questão se deverá, ou não, um médico prevenir um parceiro sexual em risco de contágio caso o paciente se decida por não dar a conhecer a sua condição.Estas questões, pese embora a sua pertinência pelo facto de tudo o que nos atormenta dever ser debatido, pecam, em meu entender, por um excesso de purismo e de fundamentalismo que não raras vezes perverte pela emoção a natureza do que de facto está em jogo.Não é toda a vida, ela mesma, um risco e não estamos nós sujeitos a cada instante, e a cada passo, a sermos feridos de morte por um dos múltiplos perigos que nos espreitam? Por quê então esta necessidade de segregação sombria que não elimina perigos e antes os concentra numa só imagem deixando todas as outras a descoberto? Não andamos nós em contacto permanente com pessoas cujo estado sanitário desconhecemos por completo? Será que deixamos, por isso, de utilizar equipamentos e infra-estruturas baseados apenas nestes receios?A resposta parece óbvia mas nem por isso consensual. Do meu ponto de vista, e porque considero que a minha pessoa não é assim tão valiosa e especial em relação a todos os que sofrem na alma e na carne muitas dores cruéis, aceito como naturais ao riscos da minha existência para os quais me preparo sem temores absolutos. A consciência cívica de cada um será sempre o grande motor da relação entre o indivíduo e os outros e, caso esta falhe, dificilmente os homens encontrarão práticas punitivas ou segregacionistas que eliminem todos os riscos de alguém para quem a sociedade deixou de lhe merecer respeito.Numa sociedade de risco admitir que um cozinheiro com SIDA é um potencial de perigo só porque exerce uma profissão em que, casualmente, se poderá ferir, esquecendo que essa pessoa é antes de tudo um ser humano que conhece os seus deveres para com os outros e logo utilizará todas as prevenções para não lhes transmitir a doença que transporta, é no mínimo grotesco. Porque este homem que precisa ser ressarcido dos danos causados contribuindo para a sociedade através da sua profissão, se for realmente um perigo pela ausência de valores comportamentais, ele será sempre um perigo quer seja cozinheiro ou não o seja. Quer tenha HIV ou não o tenha.Este cozinheiro português foi despedido mas, felizmente, vão-nos chegando exemplos doutras actuações em que, ultrapassadas as barreiras do excesso de zelo pelo estigma, se permite que os cidadãos infectados continuem o seu trabalho realizando-se e contribuindo para que outros vivam e se realizem também. É o caso do médico cirurgião israelita que, em situação de Sida, continuou operando, a uma média de 150 doentes ano, um total de 1.669 pacientes. Com precauções especiais nomeadamente através da utilização de luvas reforçadas, nenhum cidadão foi contagiado.Entretanto talvez fosse interessante conhecer quantos indivíduos, nesse universo de pacientes, foram vítimas de perigos não identificados com o HIV."

Texto de L.Soares

3 comentários:

. intemporal . disse...

Lídia

Um texto plausível na realidade que se acentua com o aumento dos infectados em todo o mundo.

Urge entender o não contágio social.

Urge tomar as medidas necessárias em caso de profissões que suscitem quaisquer tipo de risco.

Defender as pessoas e não defender das pessoas, que infectadas, são humanas e tão somente como sempre foram, são dignas e precisam de tais como todas as outras de trabalhar para viver.

Ou o que farão à população infectada em todo o mundo, tendecialmente jovem e activa, que pode viver décadas sem quaisquer tipo de complicações, desde que tratada convenientemente?

A infecção pelo VIH não pode manter-se à margem dos nossos dias.

São estes, e sou eu, e somos muitos, que vivem na busca incessante de um esclarecimento total e presente face aos infectados pelo VIH.

A ver vamos.

Um abraço apertado.

sideny disse...

Bem todos t~em medo de ser infectados, mas esquesescem-se,que os infectados precisam de levar a sua vida adiante(trabalhar, sobreviver,comer , ter dinheiro para medicamentos)como qualquer pessoa (normal).
ja pensaram que ha medicos que são seropositivos, e continuam a operar,eles tem as maiores precauçoes, como quando operam um doente seropositivo.
é assim com este pensar das pessoas que tudo continua na mesma.
que mal tinha o cosinheiro trabalhar desde que tivesse as suas precauçoes para nao se cortar caso isso acontece-se.
beijocas

Fatyly disse...

Acho que já tinha lido este magnífico texto da Lídia e foi muito bom reler, obrigado Raul.

Náo tenho a certeza mas acho que este cozinheiro, ou melhor o tribunal deu razão à entidade patronal, mas depois foi readmitido a fazer outras funções. Estarei a delirar? Julgo que não!

É hábito meu dizer quando entro numa urgência hospitalar ou até no Centro de Saúde, que vou lá por estar doente e saío em coma pelos inúmeros virús que se apanham. E os hospitalizados que morrem porque apanharam uma bactéria?
A hipócrisia continua e a meu ver nada se tem feito para inverter a situação da "má, péssima e quase nula informação versus prevenção".
Mas não darei muito tempo para que os seropositivos sejam aceites como cidadãos do mundo, já que o estigma está a diluir-se embora muito lentamente, tal como se diluiram outros doenças contagiosas.
Não são os portadores do VIH que têm que mudar, esses já mudaram pelo "salafrário", mas sim as mentalidades da sociedade portuguesa que ainda vive tapando o sol com a peneira. Bem ao seu modo...só aprendem quando lhes bate à porta e aí reclamam os seus direito num esquecimento total do que fizeram e praticaram.

Beijocas de quem ACREDITA que tudo mudará