O NATAL DO JOÃO

As luzes de Natal sempre tiveram o condão de o deixar mais sozinho. As montras, os presentes e todo o movimento da Baixa Lisboeta faziam-no sentir mais só e mais distante e com um frio interno que não era só das temperaturas baixas.
A festa da família recorda-lhe que não tem família e que algures, numa aldeia distante, a vida continua junto à lareira na festa da consoada onde talvez apenas a mãe dê pela sua falta. O coração de mãe talvez interrogue onde ele estará e talvez chore ainda que sorria na mesa que alindou para os outros membros da família.
Ele fez parte desse passado de representações e de afectos onde não cabiam os fracassos e as desilusões.
E eram grandes as expectativas que tinham sobre ele. Engenheiro de profissão depressa trepou na escala hierárquica duma empresa da margem Sul. E foi então que conheceu a Ana e com ela trilhou os caminhos do álcool e das drogas que rápido lhe trouxeram o desemprego. Em fase de reestruturação da empresa e de redução de pessoal, ele conseguiu expor-se e dar os pretextos que os patrões pretendiam para o pôr dali para fora sem indemnização.
O homem de que se falava na aldeia como um caso de inteligência e de sucesso era agora coisa nenhuma. Pelo menos ele assim o sentia enquanto olhava as montras enfeitadas e pensava na caixa de papelão onde pernoitaria naquela noite fria de Inverno.
Ele sabia que estava doente, muito doente mas tinha medo de confrontar-se com a verdade. E afinal que importava o nome da doença se a morte estava por perto? E porque haveria ele de insistir em estar vivo?
A noite fica mais densa quando se deita debaixo duma arcada do Terreiro do Paço. Um rapazito de cerca de 5 anos, filho duns sem-abrigo que, como ele, partilhavam aquele espaço, perguntava por um Pai Natal que o tinha esquecido e deixado as suas mãos vazias.
O nosso homem lembra então que num dos seus bolsos conserva um carrinho dum seu filho que, há vários anos não vê, mas que sente presente sempre que toca naquele brinquedo esquecido no seu gabinete de trabalho na época áurea em que era amado e respeitado.
E num rasgo de generosidade põe o brinquedo nas mãos do petiz que o olha deslumbrado. Sim, porque quem perdeu tudo tem muito para dar nomeadamente esse afecto supremo que lhe permite desprender-se do que mais ama.
E com a felicidade da criança, João adormeceu mais quente e mais feliz. E os seus sonhos foram de um verdadeiro Natal. (*)

* Dedico este texto ao meu amigo J.Carlos falecido no Inverno passado.

19 comentários:

R.Almeida disse...

Lídia Querida
Quando te pedi um conto de Natal que apelasse ao sentimento e ao mesmo tempo fosse uma doçura, não esperava que o mesmo me tocasse e me deixasse com uma lágrima no canto do olho.
Estou a ficar lamechas ou será que a crise despertou em mim o verdadeiro espirito de natal?
Obrigado pela partilha estou sem palavras e só posso dizer que por mim este texto foi vivido como se eu fosse o João.
Ao olhar para qualquer mendigo ou sem abrigo,penso que eu poderia estar no lugar dele ou que poderei vir a estar se isso estiver gravado no meu destino.
A ti querida amiga e a todos os nossos leitores desejo-lhes a vivência do espirito de Natal e de partilha, revelados neste texto.
Raul

sideny disse...

lidia
Ao ler este post fiquei triste, pois um homem que tinha uma vida estavel(trabalho,um curso ,familia)
de repente fica sem nada , e ninguem lhe deu a mao, que o faça sair la do fundo onde se encontrava.
fico triste , pois ninguem esta livre de ficar na situação dele.
beijinhos.

um natal cheio de saude é o que desejo a todos

SILÊNCIO CULPADO disse...

Raul

Todos nós temos um pouco do João de que falo. Todos nós, em certos momentos, sentimo-nos sozinhos quando achamos que fazemos parte duma dada representação ou quando sentimos que fomos excluídos dela.
Os mais fragilizados pela vida sentirão que vestem a pele do João na sua totalidade porém, cada caso é um caso. O que há de comum é a necessidade de afecto, esse tal espírito de Natal que torna tudo gratificante, que dá sentido à vida e que afasta os nossos medos mesmo quando nos sentimos ameaçados.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Sidney

É verdade Sidney, ninguém lhe deu a mão. No mundo das vaidades que discrimina e julga não é admitido que se faça um percurso descendente depois de ter acendido as luzes das expectativas.
O João tinha essa consciência. Não queria aparecer diminuído aos olhos dos outros nem mendigar compaixão.Não queria que lhe batessem depois de caído.
Por isso o nosso grupo (sidadania) faz cada vez mais sentido.Para que não haja mais joões nem pessoas que sobrem como restos inúteis.

Abraço

Fatyly disse...

Obrigado Silêncio Culpado por este conto de Natal de uma realidade cruel mas com uma grande mensagem porque quantos Joões não haverão por aí? Há quem nunca aceite a ser ajudado e internados fogem ou assinam os papeís para sairem, destruindo-se e destruindo quem os rodeia.

Conheço de perto a solidariedade entre os que vivem arredados da sociedade e apesar dos pesares, há quem se queixe de barriga cheia.

Uma beijo

Å®t Øf £övë disse...

Lídia,
Este teu texto é capaz de tocar o coração de qualquer pessoa que o leia. Apesar de parecer um conto de natal, ele tem nele contido uma verdadeira lição de vida, porque afinal o que não faltam por essas ruas são tantos Carlos como esse a quem dedicas o texto.
Beijinhos.

Eme disse...

Ai Lídia, li ontem, li hoje, provavelmente lerei amanhã e os restantes dias em pensamento. Só sei dizer que estou com todos os Joões do mundo, presentes e ausentes. Não leio conto nem fábula. Leio realidade. Fria,nua e crua apesar do final mais quente e feliz, fica o arrepio e o desconcerto.

Beijo e dias felizes Lídia.

Arnaldo Reis Trindade disse...

Texto bonito e triste, mas bastante real.

espero que todos vocês tenham um otimo Natal e que o espirito do mesmo permaneça em nossos coraçoes o ano todo e nos ajude a ajudar os outros.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Fatyly

Efectivamente este texto é uma homenagem a pessoas anónimas que se deixaram apanhar na avalanche da vida. Tinham qualidades para ir mais além mas faltou-lhes aquele golpe de asa e uma mão amiga que os puxásse. Faltou-lhes uma sociedade capaz de integrar.
Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Å®t Øf £övë

Verdade querido amigo que há muitos J.Carlos como este. Pessoas que têm muito para dar mas que não querem aparecer diminuídos aos olhos daqueles que tinham para eles grandes expectativas e uma crueldade implícita que não permitia fracassos.
Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

M.

Este exemplo é apenas um entre outros de que poderia falar. Mas penso que é um caso bastante ilustrativo e que demonstra que há muito trabalho a ser feito até conseguirmos que imperem outros valores mais humanizantes.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

M.

Este exemplo é apenas um entre outros de que poderia falar. Mas penso que é um caso bastante ilustrativo e que demonstra que há muito trabalho a ser feito até conseguirmos que imperem outros valores mais humanizantes.

Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Arnaldo

Obrigada pela visita e pelos teus votos. Tu és a nossa luz pela consciência cívica que demonstras numa época da vida em que as pessoas não costumam ser tão maduras.
Com a tua força sinto que afinal podemos fazer alguma coisa por um mundo melhor e que cada vez são mais os que assim pensam.

Um abraço apertado e um Natal inteiro e promissor.

Silvia Madureira disse...

Lídia:

Deixei o meu comentário no post anterior...

Virei comentar com mais calma este.


Todas as pessoas que partem deixam algo muito importante em nós...isso deve ser um motivo para nos alegrar.

beijo

SILÊNCIO CULPADO disse...

Silvia

O João Carlos deixou-me uma marca de tristeza.Ninguém devia passar por isto. Nenhuma sociedade devia permitir que alguém se afunde sem nada faxer. Utópico? Talvez. Mas caramba, uma vida é uma vida e perde-se assim?

Abraço

Tony Madureira disse...

Olá,

Texto triste... mas bem Adaptado à realidade.
Gostei imenso.


Bom Ano!

Hermínia Nadais disse...

É tal a harmonia destas palavras... que não tenho palavras!...
Beijo. Feliz 2009

SILÊNCIO CULPADO disse...

Tony Madureira

Um texto triste sem dúvida, duma realidade igualmente triste. E tudo porque as pessoas se distanciam.


Abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Hermínia Nadais

Obrigada pela visita.As palavras surgem duma situação que mexe com quem escreve.

Abraço