O Nome da Dor


Albino Forjaz Sampaio, autor do século passado, dizia no seu livro Palavras Cínicas: “Nunca te debruçaste na alma dum paralítico? Pois a qualquer momento que o fizesses havias de o encontrar absorto na raiva de toda a humanidade não ter, como ele, a sua cadeira de rodas.”

Dizia este homem, para quem a humanidade era um sucessivo desencanto, que o espírito humano tem deformidades que o levam a desejar aos outros os seus próprios males para não sofrer sozinho a compaixão e a inferiorização dos olhares que o diminuem por ser diferente.

Se é certo que Albino Forjaz Sampaio terá sempre uma parte da humanidade que se revê nas suas teorias a verdade é que, e felizmente, também há aqueles para quem a adversidade se transforma numa causa para a vida para que outros não tenham que passar pelos mesmos infortúnios. E isto independentemente da situação de desgraça lhes ter, ou não, sido ocasionada por alguém desse universo tempestuoso que Albino Forjaz Sampaio tantas vezes encontrou no seu caminho.

O mundo do HIV espelha muito todas estas situações. Pessoas que foram infectadas por outras que conscientes da sua patologia não se inibiram de passarem a outros a doença que também receberam de forma traiçoeira qual fantasma dos seus dias escuros e incertos, discriminados e solitários.

Mas é nas grandes provas que se conhecem as grandes pessoas. Raul, proprietário dos blogues SIDADANIA foi submetido a uma delicada operação cirúrgica ao coração e está agora nos cuidados intensivos. Há 12 anos que vive com o HIV e que deixou para trás os seus sucessos e uma vida que em tudo parecia ser promissora. Há 12 anos que Raul sofre na pele a dor duma doença para a qual não há cura e que só cede em troca de danos colaterais que vai provocando com a medicação adoptada.

Porém, e apesar das limitações, Raul não desiste na sua cruzada contra a SIDA, escrevendo nos seus blogues, informando-se em congressos, visitando locais onde as prostitutas procuram os seus clientes, para lhes falar sobre a prevenção e lhes distribuir preservativos. O mesmo faz com as seringas em relação aos toxicodependentes. Todas as suas forças estão centradas neste combate e, por isso, não se lamenta.

Apenas lamenta que a sua palavra não chegue a todos, que muitos se percam por falta de esclarecimento, que muitas crianças seropositivas sejam abandonadas em instituições e nunca, ou muito raramente, sejam escolhidas para adopção.

São dele as frases que a seguir transcrevo.

“Nem sempre a vida é fácil, e nós por vezes contribuímos para a tornar ainda mais difícil com a nossa inactividade.

Quotidianamente recebemos lições de vida, muitas das quais nos passam despercebidas tão ocupados estamos olhando para o nosso umbigo, ou lamentando-nos dos nossos problemas, que em vez de nos libertarmos nos afundamos cada vez mais não vendo saída, o que poderia acontecer caso investíssemos esforço na resolução dos nossos problemas.

Quantas vezes sendo incapazes de resolver os nossos problemas não aceitamos a ajuda que nos dão por pensarmos que a mesma não chega para a solução deste ou daquele problema. Certo é que somos exigentes connosco mesmo até em receber isto ou aquilo só porque habituados a pensar quantitativamente nos esquecemos que uma grande inundação começa com uma gota de água. Queremos tudo de uma vez e na medida certa para satisfazer as nossas necessidades e acabamos por as agravar tornando o nosso sofrimento cada vez maior.

Para além disso poderei dizer que me dói a alma, não só por mim mas por todos aqueles que estão infectados, e por aqueles que em breve passarão a estar porque a mensagem dos perigos da SIDA não foi passada e ela só acontece aos outros.”

Cedido por Silêncio Culpado / Texto de Lídia Soares

9 comentários:

SILÊNCIO CULPADO disse...

Paulo
Este texto que dediquei ao Raul é uma lição de vida a que o Raul se entrega consciente de que tem muito para dar e há muitos à sua volta a precisarem de ajuda.
A fortaleza e o sentido da vida residem exactamente nisso: em sentirmos que somos precisos e que não começamos e acabamos em nós mesmos.
O Raul ensinou-me imenso e aguardo a sua recuperação para darmos continuidade aos projectos que temos em conjunto e dos quais também fazes parte.
Abraço

Eme disse...

Paulo e Silêncio Culpado, dirijo-me a ambos claro porque tenho-me apercebido nos últimos dias que se não for em equipa,nada avança para a frente. E isto também se aplica ao sidadania. Desde que o Raul foi internado senti tanto a falta das nossas conversas diárias que para compensar desatei a ler o Sidanania I desde o primeiro post... devagar. Tenho muito para ler ainda. Mas não posso deixar de referir o que aprendi nestas leituras sobre o verdadeiro carácter do Raul. Fiquei sobretudo feliz por verificar que as minhas suspeitas sobre a humanidade que este homem carrega não eram infundadas e de facto o Raul é um exemplo como poucos que conheci; toda a gente comete erros na vida mas nem todos os assumem com coragem como ele, andando para a frente e assumindo a causa dele de alma e coração a favor dos outros. Tenho sentido uma vontade enorme de fazer parte desta equipa embora não o admitisse a mim própria. Mas quer acreditem ou não, o sidadania, o Paulo e o Raul têm-se tornado algo que me ocupa diariamente o pensamento e eu só tenho a dizer que, dentro do meu possível, estou a fazer tudo para que a voz do Raul se faça ouvir mais longe e que a mensagem chegue a todos e sobretudo aos que dela necessitem. Grandeza é o que existe aqui. Grandeza de corações, almas, pessoas. E eu.. gosto de estar aqui com vocês e a sentir-me pequena.

Beijos a uma equipa fantástica.

SILÊNCIO CULPADO disse...

M.
Não há equipas fantásticas se não houver pessoas que as acrescentem. A grande vantagem do infortúnio é, sem dúvida, a humanização que o mesmo provoca tornando as pessoas mais coesas nas amizades que se vão cimentando a par e passo.
Não te conheço mas percebo o apreço em que o Raul te tem e isso faz com que já faças parte da nossa família que há-de crescer para que o amor entre as pessoas seja possível nestas sociedades desumanizadas pelo individualismo.

Um abraço fraterno

Arnaldo Reis Trindade disse...

Bem, desde ja fiquei assustado com o que houve com o Raul e espero boas noticias em breve, agora continuando meu comentario, algo que agora tenho pouco tempo pra fazer por mais que tente nao consigo muito entrar na internet, o que posso e faco sempre [e pensar em voces e torcer para que tudo em nossas vidas de certo e para que possamos de alguma formar nos ajudar e ajudar aos outros, fico feliz por ser de alguma forma parte dessa equipe, mesmo que eu seja apenas um gandula que cata as bolas que sao jogadas fora do campo.



Abracos a todos
e estou com problemas no teclado.

Branca disse...

Comentei hoje este texto no Silêncio Culpado mas para não me repetir deixo apenas um grande beijo para o Raul e votos de que melhore dia a dia. Sei que essas intervenções têm uma recuperação mais ou menos demorada, a minha mãe também foi operada ao coração em Novembro do ano passado, agora está óptima, mesmo com os seus 76 anos. O Raul vai ficar bom.
Beijinhos para ele e para ti Paulo.
Branca

Fatyly disse...

A vossa tenacidade será sempre uma mais valia, uma campanha verdadeira e preventiva no combate à SIDA, porque devemos dar a cana e ensinar a pescar e na net são sempre necessários blogues como este com informação credível, sem fantasmas e infectados ou não, todos devemos dar as mãos para que se ajustem as agulhas.

Uma maravilha esta partilha.

Beijos a todos e ao Raul o seu rápido restabelecimento.

Odele Souza disse...

Já conhecia o texto deste post, mas estou aqui também para saber notícias do Raul.

Deixo um abraço.

isabel mendes ferreira disse...

o nome da dor?


a dor é um nome ENORME....que se cola à pele....como um véu. que devasta.



Boa noite Paulo.


abraço.


(...........).

R.Almeida disse...

Olá Lídia
Desculpa demorar a comentar este texto, mas melhor do que ninguém, sabes das dificuldades e das dores em cada letra que teclo.
Forjaz Sampaio está certo, nas afirmações que faz, pela visão que faz d o mundo.
O egoísmo do ser humano não tem limites em tantas coisas em que o mal que nos calha na rifa tem de acontecer forçosamente aos outros.
Eu aprendi tantas coisas na vida, entre as quais, de que o mal que me calha é sempre menor do que o dos outros. Uma noite depois de um dia cansativo de trabalho e com febre o que me dava um mal-estar terrível, tive de ir às urgências de um hospital com um dos meus filhos.
A criança doente sem eu ter o prognóstico real da gravidade da mesma, eu com febre tendo já vomitado algumas vezes e sentindo-me terrivelmente mal. Absorvido nos meus pensamentos a certa altura, entrou uma maca com um jovem coberto com um lençol manchado de sangue. Embrulhada num plástico ao seu lado uma perna decepada. Atrás uma senhora essa totalmente tapada o que indicava ser cadáver. Duas crianças chorando ao colo dos maqueiros entraram também.
Deixei-me dos meus pensamentos lamuriosos, ao ver aquela tragédia e pensei : - Ontem, anteontem e durante tantos dias tenho sido feliz e com uma vida tranquila. Se aqui viesse todos os dias poderia aperceber-me que sou um ser humano feliz, pois todos os dias veria pessoas em sofrimento.
É bom partilharmos a nossa felicidade e acreditar que por muito mal que possamos estar há sempre alguém sofrendo mais do que nós. Que valor tem o bem-estar e a felicidade se não houver ninguém que saiba o que isso é?
Prefiro ser solitário na dor, mas isso infelizmente nunca acontece, pois estou sempre acompanhado por milhões de outros seres humanos que nesse preciso momento estão sofrendo bem mais do que eu.
Um Beijo alegremente sofrido