Watcher

Entrevista dada à revista "Pública", alguns anos atrás
Ele preferia uma conversa pela Net, no "messenger", mas acaba por aceitar um encontro, sem fotografia. Sugere um de dois sítios na periferia de Lisboa: uma bomba de gasolina e um centro comercial. Não dá pistas de aparência: pede-as. Será ele a reconhecer, sem poder ser reconhecido.
Às nove e meia da noite, frente à loja x do centro comercial lá está o banco de madeira que Watcher mencionara. Um adolescente que vai embora, um homem que muda de posição, uma mulher que chega. A noite caminha para as dez, e nada.
Até que vem um homem apressado, e atrás dele um rapaz. "Estive mesmo para não vir", diz Watcher, cumprimentando decididamente com dois beijinhos. Apresenta o rapaz. "O meu filho."
Podiam ser os Silva. O filho finalista da universidade, a apanhar boleia do pai, despedindo-se agora para ir às suas voltas. O pai, que não chegou à universidade, a ficar grisalho, pulôver azul-escuro, maço de tabaco no bolso das calças. Watcher é só um "nickname" no "chat" do "site" aidsportugal.com.
"Sabe porque dei dois beijinhos?", pergunta Watcher mal nos sentamos na zona mais despovoada do "fast food". "Para ver a reacção", responde, puxando do primeiro de muitos cigarros. "Nós não somos bichos. Tenho uma vida familiar completamente normal. Se alguém me garantir a subsistência, dou a cara, sem problemas, embora sabendo que algumas pessoas se afastariam."
É um português crescido em Angola, para onde os pais tinham ido. "No 25 de Abril deu-se o colapso, eles tiveram que vir." Watcher, já casado, preferiu tentar a África do Sul. Lá esteve 15 anos, a trabalhar na "área de electrónica", até a violência de Joanesburgo o empurrar para Portugal. "Queria que os meus filhos fossem educados num país em paz."
Começou a trabalhar por conta própria. A mulher ficou em casa. "Como eu ganhava bem, decidimos que ela se dedicasse aos filhos." Em 1996, estava a passar férias com a família fora de Lisboa e teve "uma aventura". "Era uma moça de engate, não era uma prostituta de rua. Conheci-a num bar e passei uns tempos com ela. Arranjava escapadelas."
Nunca usou preservativo. "Não me passava pela cabeça, achava que não seria uma relação de risco. Pensava que os indivíduos com HIV eram asquerosos, drogados." Ela falou em usar preservativo? "Não." Se tivesse falado, teria aceite? "Vamos lá a ver... na altura, para mim, o preservativo era uma barreira, um inibidor. Até seria capaz de aceitar, mas seria um inibidor."
Três meses depois, "tinha umas febres que não passavam", andou em médicos e consultas, até que lhe propuseram fazer o teste. "Eu estava tranquilo." Quando o resultado ficou pronto, o chefe do bloco veio ter com ele. "A primeira coisa que me disse, de uma maneira cruel, fria, foi: 'O senhor está infectado.' Fiquei branco, ia caindo, desmaiando. Depois perguntou-me: 'É homossexual?' Eu disse que não. 'Andou com prostitutas?' Eu disse que em tempos sim, mas actualmente não, embora tivesse tido uma relação com uma pessoa de confiança. Perguntou-me se era casado, disse que sim. E então disse umas palavras que me ficaram marcadas para a vida: se eu ia dizer à família, porque tinha tido um doente que não disse à família."
Watcher saiu do hospital a saber que contar à mulher significava dizer três coisas: a infidelidade, a infecção e a possibilidade dela estar infectada. "Porque antes de eu entrar no hospital, houve um dia em que tive sexo com ela. E já estava contaminado."
Contou-lhe. "Ela foi fazer o teste e deu negativo. Foi um alívio para mim, não tinha feito mal a ninguém. Fiz a proposta de nos separáramos, dividirmos os bens, mas ela não quis. Disse: 'Se estamos casados para o bem, continuamos para o mal'." Também contou à filha e ao filho. "Não reagiram mal. Ao rapaz, que começava a ter uns pêlos na cara, recomendámos que não usasse a minha gilete."
Nos primeiros tempos achou que ia morrer logo. "Não sabia nada sobre a infecção, nada." Começou a ligar para linhas de apoio, até que encontrou a associação Positivo. "Libertei-me daquela obsessão de que ia morrer. Os meus filhos ainda andavam no secundário, então comecei a estabelecer metas de vida. Primeiro, quis ver a ponte Vasco da Gama e fui à feijoada da inauguração. Depois, a Expo. Depois, a minha filha a acabar o curso, e a casar — casou há seis meses. Depois, ver o filho licenciado. E vou vê-lo, se Deus quiser. Não que seja crente de ir à igreja. Sou católico de nascença, não praticante. A minha próxima meta é ter uma morte descansadinha, com netos à volta."
Chegou a tomar 24 comprimidos por dia, hoje toma 11, e está com a carga virai indetectável. Sofreu e sofre com os efeitos secundários dos medicamentos: pedras nos rins, graves lesões no fígado, emagrecimento de pernas e rabo.
Durante sete anos parou de trabalhar. Ven­deu "algum património" para aguentar. Agora trabalha por conta de outrem. Ganha "mil euros limpos, mais carro, bónus, alimentação e gaso­lina". A casa é própria e já está paga. Continua a ter vida sexual. "Claro, nós vivemos. A minha mulher por vezes tem um certo receio, mas habituámo-nos." Sempre com preservativo. "Em qualquer relação que tenha, hoje não concebo não ter preservativo." É o que diz aos filhos e aos sobrinhos, a quem também contou, e que ao todo são 15. "A minha má experiência pode beneficiá-los. Digo-lhes para não confiarem em ninguém, porque não está escrito na testa."
E defende convictamente a legalização da prostituição. "Se houvesse um controle, não se espalharia tanto o vírus e outras doenças, sífilis, gonorreia, hepatites... Há uma grande procura por parte de indivíduos que têm família, porque é completamente diferente ter uma relação com uma prostituta. O homem de vez em quando quer urna coisa extra e vai à procura. Em todo o país, há casas de prostituição para todos os preços, desde 20 euros. Até põem '20 pétalas' nos anúncios. Vá ao jornal e procure. Nós, basicamente, somos animais no que respeita ao sexo. E não temos cio, ao contrário dos animais. Pode ser uma moça que passa e naquele momento faz a ilusão. Há uma oferta muito grande de motéis, entra lá para dentro e tem tudo, encomenda preservativos por telefone, já lhe perguntam se quer com sabor."
No seu caso, ultrapassados os 50 anos, diz, a demanda sexual não é tão grande. "Só em casa. Mas não quer dizer que não possa acontecer." Aos amigos dos almoços e pândegas, a quem não contou da infecção, dá conselhos: "Tomem juízo, que hoje há muita porcaria por aí."
A colaboração no "chat", como membro do painel que responde a dúvidas, é um dos seus orgulhos. "Sou um activista pelos direitos dos seropositivos, para que não sejam marginalizados, para que haja oportunidades de emprego. Já viu a quantidade de miúdas toxicodependentes que andam na rua? Fazem tudo por dinheiro." A seropositividade, o contacto com outros seropositivos, faz parar para pensar na vida. "Passei a ver a homossexualidade de outra maneira. Antes, rejeitava. Agora penso que é uma forma de estar na vida."

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