Entrevista Interessante

Entrevista Luc Montagnier: uma vacina contra a sida terá de impedir que o vírus sofra mutações
02.06.2008 - 11h41 Ana Gerschenfeld
O cientista francês que descobriu o vírus da sida em 1983 explicou este sábado em Cascais, no primeiro Congresso Ibérico sobre Medicina Anti-Envelhecimento e Tecnologias Biomédicas, a sua visão da medicina do futuro. Depois, falou com o PÚBLICO da vacina que está a desenvolver contra a sida e que acredita poderá estar pronta dentro de uns anos.Luc Montagnier, hoje com 75 anos, é um virologista de longa data. No início dos anos 80, quando começou a epidemia de sida, decidiu desmascarar, com a sua equipa do Instituto Pasteur, em Paris, o agente responsável pela nova praga. O anúncio oficial da descoberta do vírus da sida viria a ser feito na revista Science, num artigo publicado a 25 de Maio de 1983. Vinte e cinco anos depois, e apesar dos repetidos falhanços no mundo inteiro na procura de uma vacina contra o HIV, Montagnier, Prémio Lasker de Medicina e Presidente da Fundação Mundial para o Estudo e Prevenção da Sida da UNESCO, acredita que é possível erradicar para sempre o vírus do organismo das pessoas infectadas graças à vacinação. Por isso, continua a trabalhar activamente, dos dois lados do Atlântico, metade do tempo em França e o resto nos EUA, em empresas privadas que ajudou a fundar.
O que é que a vacina que promete para breve terá de original em relação a todas as suas mal sucedidas predecessoras?
As expressões-chave da resposta de Montagnier são "stress oxidativo", "dispersão genética" ou ainda misteriosas "nanoformas". Algumas das suas ideias são muito especulativas e cientificamente arriscadas, mas Montagnier confia que vai ganhar a sua aposta.
Vinte e cinco anos depois da descoberta do vírus da sida no seu laboratório, em que ponto é que se encontra a investigação?
Desde que isolámos o primeiro vírus, fez-se muita coisa. Primeiro, a identificação do vírus permitiu desenvolver o teste serológico com o qual conseguimos erradicar a transmissão do vírus pelo sangue - pelo menos a de origem médica. Também permitiu definir políticas de prevenção. E, claro, desenvolver medicamentos que, embora não sejam uma cura, permitem hoje que muitas pessoas infectadas vivam com o HIV. Esta é a parte positiva do balanço. A parte negativa é obviamente a ausência de uma vacina. Todos os ensaios clínicos de vacinas têm sido negativos.Mas acho que há muitas pessoas que são expostas ao vírus HIV e cujo sistema imunitário elimina ele próprio o vírus. Se a natureza consegue vencer o vírus, nós também devemos ser capazes.
Há umas semanas, o prémio Nobel norte-americano David Baltimore declarou-se desalentado quanto às perspectivas de desenvolvimento de uma vacina contra o HIV, seja ela terapêutica ou preventiva. Concorda com essa opinião?
Não, não concordo. É a visão de um biólogo molecular que não é médico. Respeito-o profundamente, claro, mas acho que muitos têm uma visão clássica da vacinação e querem tratar o vírus da sida como se fosse um vírus vulgar. Mas há uma diferença entre o HIV e os outros: o HIV aprendeu a mudar constantemente.
Como é que o vírus faz para estar sempre a mudar?
Só agora é que começamos a perceber o processo. Acontece que um dos genes do vírus comanda o fabrico de uma proteína, chamada Tat, que vai induzir um "stress oxidativo" [produção de compostos como os radicais livres, que são tóxicos para as células], o que por sua vez vai provocar mutações no próprio vírus. Isso pode acabar por matar a célula infectada, mas dá tempo suficiente ao vírus para se replicar e mudar.Por outro lado, o vírus fabrica umas coisas chamadas "nanoformas", que são nanoestruturas que fogem a tudo o que possamos fazer contra elas. É possível detectá-las no plasma das pessoas tratadas com triterapias [apesar de o vírus ser indetectável no seu organismo]. A minha convicção é que, se quisermos erradicar realmente o vírus através de uma vacina terapêutica, vamos ter de fazer desaparecer essas nanoformas do plasma das pessoas infectadas. Estamos a estudar essas nanoformas no meu laboratório.
O que é que são essas nanoformas?
São provavelmente estruturas que representam uma parte da informação genética do vírus. Estou a falar de um conceito novo, que é a ideia de "dispersão genética". O vírus da sida utiliza a táctica da guerrilha: espalha bocadinhos por todo o lado para escapar ao exército.
Bocadinhos de ADN?
De ADN, ou talvez de ARN.
No espaço entre as células?
Sim, eles circulam no sangue, no plasma. E enquanto essas nanoestruturas não forem tidas em conta, não haverá vacina que funcione.
Está portanto a desenvolver uma vacina? Quanto tempo acha que vai demorar?Sim e acho que vamos conseguir em relativamente pouco tempo - é difícil dizer ao certo, mas provavelmente dentro de uns anos. Ainda temos de fazer os testes clínicos.
A vacina será terapêutica ou preventiva?
Vamos desenvolver primeiro uma vacina terapêutica, porque é mais fácil provar a sua eficácia. Para testar uma vacina preventiva, é preciso expor milhares de pessoas ao vírus, vacinando algumas e não outras - o que, no limite, não é ético. Ao passo que com uma vacina terapêutica, temos um doente que está a tomar uma triterapia, vacinamo-lo e interrompemos a triterapia. Se a vacina resultou, o vírus não deve regressar quando paramos o tratamento. Se não resultou, o vírus reaparece - é muito simples.As triterapias fazem diminuir a carga viral ao ponto de tornar o vírus indetectável no organismo.
Mas as nanoformas persistem? E o que acontece ao interromper o tratamento?Proliferam muito mais.
E podem voltar a formar vírus?
Tudo isto é hipotético e é preciso ser prudente. Mas acho que, ao contacto das células, podem reconstituir partículas virais. É por isso que os vírus actualmente em circulação têm uma estrutura em "mosaico", são misturas complexas. Não são combinações de genes inteiros, mas de bocadinhos de genes; são autênticos mosaicos de recombinações genéticas.
A sua vacina terá como alvo essas nanoformas?
Não. O alvo será sempre o vírus, através de a produção de anticorpos e de células imunitárias contra ele. Nesse sentido, a nossa vacina é uma vacina clássica. Só que, como as nanoformas são produzidas pelo vírus, se o vírus for totalmente suprimido, elas também deixarão de existir. As nanoformas são marcadores cuja presença nos vai ajudar a avaliar os efeitos da nossa vacina. Não excluímos que possa haver formas de acção específicas contra as nanoformas, mas por enquanto não posso dar mais pormenores.
Já tem resultados publicados sobre essas nanoformas?
Ainda não.
Mas o que é que a sua vacina terá de novo, se é, como acabou de dizer, uma vacina clássica?
O que a vacina vai ter de novo é algo que vai impedir a variação do vírus. Há dez anos que defendo esta abordagem.
Como se faz para impedir que o vírus varie?
Agindo sobre os factores que o tornam variável [ri-se]. É uma resposta de La Palisse... Esses factores são a recombinação genética, a dispersão genética e o "stress oxidativo". De facto, o que é interessante é que os vírus que produzimos há anos nas culturas laboratoriais não mudam. O terceiro vírus que isolei - chamado LAI, e que é utilizado para a produção de todos os testes serológicos no mundo - continua igual a si próprio.O que significa que o que faz mudar o vírus é algo que acontece dentro do organismo humano.Isso mesmo.
Portanto, em vez de fazer vacinas que sirvam contra todas as formas possíveis do vírus, o que pretende fazer no seu laboratório é o contrário: estabilizar o vírus para melhor o abater.
Sim. Queremos impedir que o vírus mude.
Quando descobriu o HIV, imaginava que as coisas pudessem ser tão difíceis?
Não, e todos estávamos enganados. Os americanos pensavam que íamos ter uma vacina preventiva em dois anos. Eu tinha previsto uma vacina talvez para o ano 2000, mas mesmo assim enganei-me... [ri-se]. Mas pensando melhor, quando tivermos uma vacina preventiva, quem é que vamos vacinar? Acontece algo semelhante com a vacina contra o cancro do colo do útero (que na realidade é apenas contra um dos factores deste cancro, o vírus HPV). Será que devemos vacinar as raparigas antes de terem contactos sexuais, ou não? Quando administramos uma vacina a crianças, temos de ter a total certeza de que não vai ter efeitos secundários a longo prazo. Uma vacina preventiva seria com certeza útil, mas o que não sei é se vai ser possível vacinar a população em massa. Penso que a prioridade é a vacina terapêutica.
Hoje estuda a prevenção de doenças crónicas e as doenças degenerativas ligadas ao envelhecimento. Como passou da sida para esta área?
Primeiro, passei da sida para o stress oxidativo, porque constatámos há uns anos que existia um forte stress oxidativo logo desde o início da infecção pelo HIV. Qualquer infecção, bacteriana ou viral, cria um stress oxidativo. Na altura, experimentámos administrar anti-oxidantes a pessoas seropositivas e obtivemos resultados interessantes. Mas quando apareceram as triterapias, os médicos não quiseram mais ouvir falar em antioxidantes - embora este tipo de tratamento esteja agora a voltar como terapia complementar.
Durante a sua conferência, disse que está a promover a criação de centros de prevenção de doenças, onde as pessoas iriam fazer testes, nomeadamente medir o seu stress oxidativo, de forma a poderem agir contra os seus efeitos através de tratamentos, dieta, exercício físico. Isto incluiria a sequenciação do genoma de cada um?
Certamente. Não somos todos iguais do ponto de vista genético. Por isso é que há fumadores inveterados que nunca apanham cancro e outros que nunca fumaram mas que desenvolvem um cancro do pulmão por culpa do fumo dos outros. Conhecer as variações genéticas de cada um é importante para desenvolver uma medicina individualizada, para adaptar os tratamentos e a nutrição a cada pessoa. A única opção para a medicina em termos sociais consiste em prevenir as doenças crónicas que custam mais caro: doenças cardiovasculares, cancros, doenças degenerativas do sistema nervoso. De outra forma os sistemas de segurança social não vão conseguir acompanhar os custos.
As vitaminas C e E têm propriedades anti-oxidantes, mas, recentemente, foi publicado um estudo que sugeria que tomar vitaminas poderia ser mau para a saúde e até encurtar a vida...
É por isso que os médicos hesitam em prescrever vitaminas: porque lhes enchem a cabeça de estudos clínicos mal feitos, com apenas uma vitamina. Houve ensaios com vitamina E que deram resultados negativos, porque não usaram a forma certa de vitamina E e porque a administraram sozinha. Nunca se deve administrar só vitamina E, porque ela faz parte de uma cascata, por assim dizer. É preciso que seja sempre acompanhada de vitamina C. É uma dupla indissociável.
As pessoas não sabem isso.
Pois não. Num grande estudo em França, o Suvimax, junto de milhares de pessoas, um grupo foi tratado com cinco suplementos: vitamina C, E, selénio, zinco e beta-caroteno, o "cocktail" clássico. O outro grupo não tomava nada. Passados uns dez anos, houve uma nítida diminuição na incidência de cancro nos homens que tomavam os suplementos, em particular dos cancros da próstata. A diferença foi menor nas mulheres, talvez porque as mulheres já costumam comer mais frutas e legumes, enquanto os homens só gostam de bife com batatas fritas [ri-se].
Mas então os complexos vitamínicos fazem efeito?
Fazem, na condição de não haver sobredosagens - o excesso também pode ter um efeito pró-oxidativo, portanto as pessoas não se devem automedicar. O que é preciso é que estes produtos, que não são ainda medicamentos, comecem a ser receitados pelos médicos e que, na sequência de ensaios clínicos que mostrem os seus efeitos, se tornem medicamentos de corpo inteiro. Mas isso não será fácil, porque são as misturas destas substâncias que são activas - e, ainda por cima, as melhores misturas são provavelmente as naturais. Mas as misturas de frutas e legumes não interessam à indústria farmacêutica.
Os brócolos e os espinafres não têm valor monetário.
Pois não. As autoridades francesas transpuseram os resultados do Suvimax aconselhando as pessoas a comerem cinco peças de fruta ou legumes por dia. Mas não é assim tão simples, porque é preciso que a fruta e os legumes sejam frescos, o que nem sempre acontece, e que não tenham pesticidas, porque os pesticidas fazem diminuir a produção de moléculas anti-oxidantes pelas plantas tratadas. Mas os produtos biológicos são caros e nem toda a gente pode comprá-los.

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